Governo mexicano comprou software para espionar jornalistas que o investigavam. |
Já se sabe que jornalistas e defensores de direitos humanos do México — país que ocupa a pior posição no ranking regional de liberdade de imprensa — têm com frequência seu trabalho cerceado, e suas vidas ameaçadas, quando não interrompidas, por narcotraficantes. Mas a acusação de que o próprio governo mexicano estaria utilizando programas de espionagem para hackear repórteres e ativistas coloca o país em um patamar ainda mais perigoso. E a resposta evasiva à denúncia, publicada na segunda-feira pelo "New York Times", agrava ainda mais a situação.
Com a ajuda do software de espionagem Pegasus, comprado por US$ 80 milhões da empresa israelense NSO Group por pelo menos três agências governamentais, foram realizadas ao menos 88 tentativas de invasão ilegal em telefones de 12 pessoas que investigavam o governo, entre janeiro de 2015 e julho do ano passado, segundo denúncia apresentada à Procuradoria-Geral.
O método é bastante simples: os alvos recebem um SMS com links que parecem verdadeiros, mas que levam à instalação do programa de espionagem. A partir daí, o software se infiltra nos celulares e monitora detalhes como ligações, mensagens de texto, e-mails, contatos e calendários, além de usar a câmera e o microfone para vigilância. Carmen Aristegui, jornalista que ajudou a revelar, em 2014, que a mulher do presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, tinha comprado uma mansão de uma importante empreiteira do governo, e o ativista político Santiago Aguirre, subdiretor do Centro de Direitos Humanos Miguel Agustín Pro Juárez (Centro Prodh), que investigava, à época, o caso — até hoje não solucionado — dos 43 estudantes de Ayotzinapa, desaparecidos em 2014, foram alguns dos alvos.
— Sempre se soube no México que as pessoas são ou podiam ser espionadas desde o âmbito do poder, no entanto, é a primeira ocasião em que há evidências contundentes e científicas que comprovam os sistemas de espionagem — afirma Aristegui, da CNN en Español, uma das jornalistas mais famosas do país. — E o governo deu uma resposta que não pode ser considerada como resposta. Uma nota breve, insuficiente e informal, muito aquém do que se espera do Estado frente a atos tão graves.
Daniel Millan, diretor-geral de meios internacionais da Presidência, emitiu um comunicado sucinto ao jornal americano, afirmando que não há prova alguma de que o governo seja responsável pela espionagem descrita na reportagem — "Nós reprovamos qualquer tentativa de violar o direito à privacidade de qualquer pessoa", diz o texto. Mas, logo após a publicação da denúncia, milhares de mexicanos exigiram, no Twitter, respostas sobre o caso, com a hashtag #GobiernoEspía (governo espião), que rapidamente tornou-se uma das mais comentadas na rede social — o Partido Revolucionário Institucional (PRI), de Peña Nieto, tem um longo histórico de perseguição e intimidação de jornalistas.
— Faço parte de uma equipe de jornalistas que vem sofrendo vários golpes de censura. Eles nos atacam de vários ângulos, e não posso interpretar de outra forma se não como uma represália por ter investigado e publicado o caso da mansão de mais de US$ 7 milhões — denuncia Aristegui, que revela ter sido condenada juiz "por uso excessivo de liberdade de expressão".
Na terça-feira, o escritório no México do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos condenou os "atos de vigilância ilegal digital" e exortou o governo a "conduzir uma investigação independente" para esclarecer os atos de espionagem, incluindo qualquer instituição pública que possa estar implicada".
O software não deixa rastros do hacker que o utilizou — e seu fabricante afirma que não pode determinar exatamente quem está por trás das tentativas de invasão. Mas dezenas de mensagens enviadas aos alvos foram analisadas por institutos especializados, como Artículo 19, R3D e Social Tic, este último com a assistência do Citizen Lab, da Universidade de Toronto, no Canadá, que comprovaram que a intenção era vigiar pessoas críticas ao governo. O NSO Group garante ainda que é muito pouco provável que criminosos digitais tenham conseguido acessar o software, já que o programa só pode ser utilizado pelas agências governamentais que tenham a tecnologia instalada.
— O uso mal intencionado de tecnologia não é uma realidade apenas no México mas, enquanto em outros países da região, como Panamá ou Colômbia, as denúncias são investigadas, não tivemos uma resposta de anúncio de investigação exaustiva — acusa Santiago Aguirre, que lembra que a prática de publicar conversas privadas de políticos tem sido comum em campanhas. — Não houve um posicionamento público ou uma resposta séria do governo federal, o que só confirma que somos o país com maior impunidade da América Latina.
Aguirre recebeu uma mensagem relacionada ao caso de Ayotzinapa, que o Centro Prodh investigava à época, como isca para ser hackeado - outros dois funcionários, incluindo o diretor Mario Patrón, também receberam textos semelhantes. Outras mensagens eram mais pessoais, e indicam uma espionagem ainda mais invasiva. A Carmen Aristegui foi enviado um texto supostamente da embaixada dos EUA, que falava de um problema com seu visto.
E as tentativas de espionagem chegaram, inclusive, a familiares dos ativistas e jornalistas. O filho de Aristegui, menor de idade, também foi hackeado "dezenas de vezes" quando estava em terriório americano. A mulher de Juan Pardinas, conhecido ativista anticorrupção, por sua vez, recebeu uma mensagem com supostas provas de que seu marido tinha uma amante.